quinta-feira, 13 de agosto de 2009

DIAS DE SETEMBRO, em prosa

Nunca soube a origem da expressão "dias de setembro": se fui eu que inventei, se li em algum lugar e adotei por afinidade, embora considere essa última hipótese a mais provável.

O fato é que agosto e setembro foram meses que me marcaram de forma muito negativa, diante de acontecimentos ruins que me aconteceram nesses meses, em épocas já distantes da minha vida, graças a Deus, mas que se reverteram posteriormente de tal modo que trouxe uma marca profunda na minha alma.

Tudo começou quando em setembro lá atrás, meu pai foi diagnosticado com um câncer incurável, que o mataria fatalmente em um ano.

Esperamos, adolescentes e crianças que éramos, os irmãos (5) e minha mãe, essa morte anunciada.

Eu me lembro que sentia uma urgência de fazer alguma coisa que pudesse deixar meu pai orgulhoso de mim, mesmo depois de morto. Não consegui, nada há que uma criança possa fazer de tão importante assim, no plano material, pelo menos na minha cabeça de criança ansiosa e angustiada, frente àquela situação.

Desisti... então comecei a rezar, fiz promessas, devidamente cumpridas e nada do nada passar...

Foi aí que a mão milagrosa do tempo (e o quê mais?) intercedeu, e meu pai, de repente, já não tinha nenhuma foice em sua cabeça, estava livre. A bem da verdade, ele nunca deixou de ser livre, porque continuou a ser ele mesmo, ainda que com todos esses prognósticos...triste mesmo ele ficou somente com a morte de sua irmã mais velha que havia sofrido muito com o vaticínio dado a ele. Coitada, ela partiu primeiro!

Hoje, quase 20 anos passados de cirurgia, acrescentadas mais duas no currículo, um acidente de carro, 75 anos, ele talvez possa ser considerado, para além de um homem de sorte, um homem marcado para viver.

Já em outro setembro da minha vida, passei pelo que hoje considero também um divisor de águas. Tive uma crise de depressão que me derrubou e me ressuscitou para a vida. Não entro em detalhes, porque ainda hoje as lembranças daqueles dias imersos em tristeza, insônia e dor não são coisas de que se fale assim, já iniciada a madrugada. Falaremos disso depois, à luz do dia, a noite sempre é soturna e maximiza as coisas.

Foram esses os dias de setembro que lá ficaram e que ainda carrego comigo...

AS HISTÓRIAS DE HELENITA

Helenita morava lá numa fazenda do Tocantins, no meio de um cerrado, com um rio ao fundo da casa, curral e um vasto quintal para a criação de aves, além das plantas típicas do cerrado, frutas de época, rosas e uma pequena horta. Um pequeno paraíso.

Eu, de férias, numa das viagens do meu irmão a trabalho, fui parar lá.

Cheguei ao lugar, passando por dois córregos, ainda com algumas matas virgens, mas, em outro trecho da estrada, vi, entristecida, quando o carro desceu feio numa ribanceira, um cemitério de rio que se prolongava em linha retilínea, numa extensão de barro endurecido por todo aquele local ainda fundo, onde restara pó e um pouco de mato ralo ao redor.

Meu irmão, conhecedor do local, disse que ali havia sido, de fato, um rio, ou melhor, um córrego bem grande, onde, inclusive, em época de chuva, transbordava...hoje não restava sequer uma gota d’água.

Seguimos em frente, e, após umas duas horas, chegamos a tal fazenda, onde meu irmão foi fazer um trabalho de campo. Sem poder seguir com ele, tive que ficar por ali. Sentei num banquinho de toco de madeira, comecei a fumar, no que se aproximou Helenita e me pediu um cigarro.

Sentou ao meu lado e começamos a conversar.

Helenita era uma mulher que, não fosse a pobreza e a falta de cuidados, poderia ser considerada linda. Era morena, cabelos e olhos pretos, nariz desenhado, corpo bem feito, enfim, uma mulher bonita, a despeito da simplicidade. Tinha também um quê de languidez, aumentada pela maneira que conversava, com um sorriso cheio de sensualidade.

Era o seu segundo casamento. Esse último marido se chamava Messias. Não pôde ter filhos, tampouco sentia falta:

– Deus num quis, num me importo. Tenho o utro seco.

Vivia de maneira solitária, só com o marido, os cachorros, já que vizinhos só dali umas 5 léguas.

Disse que gostava muito de conversar, ao contrário de Messias, fato que a levava a conversar sozinha, consigo mesma, principalmente quando estava no rio, lavando vasilhas ou roupas, chegava a dar grandes risadas das histórias que lhe vinham à cabeça:

– Mesmo sozinha, Helenita?
– E o que é que tem? É sozinha... quem não tem cão caça cum gato.
– Mas você ri de quê?
– De um tudo, me alembro de história até deu piquinininha.
– E você só ri ou chora também? Lembra de alguma coisa triste?
– Ichi e demais, me alembro sem querer alembrá, mas essas coisas de vida num tem jeito, fica lá ispizinhando a gente.

Então, contou que o seu outro companheiro tinha morrido:
– Ah, então, você é viúva?
– Não, num sô não, eu era, num sô mais.

Foi quando contou que o seu outro companheiro havia se matado:
– Morreu de formicida tatu, ele tomou tanto que dava pá matar uns três dele, entonce, ele queria era morrê mermo. Ele num pensô ni mim.

Adiante se foi a história, mas Helenita não guardava lá grandes dores não:
– Deus num perdoa ele porque ele morreu de mal ruim, tudo por causa de bobagi de ciúme, num pudia vê eu conversando com ninguém. Ele é que acabo, eu tô aqui vivinha.

Disse não sentir remorsos, porque não teve culpa, ele assim escolheu. Relatou que, a princípio, começou ficando doida, correndo no cerrado, até por dois dias seguidos, como se aquilo pudesse aliviar sua dor, mas quando voltava pra casa, começava tudo de novo. Deu pra beber também, mas o que lhe restava no dia seguinte era só dor de cabeça. Por uma época, passou a rezar todos os dias, enfim, fez tudo o que pôde, mas a danada era mais poderosa.

Pereceu nessa labuta bem uns três anos, mas quando conheceu Messias parece que sua vida havia começado de novo, sentia uma alegria...que ficava perguntando o quê era aquilo.

Dias indo, dias vindo, ela ali trabalhando de vaqueira com o marido, nem sempre sozinha nem sempre acompanhada, e o mundo parece que já era outro, sua vida de hoje não era mais aquela, ela era outra.

No caminho de volta, conversando com meu irmão sobre Helenita, ele diz:
- Você deu conversa pra ela? Aquilo é doida de pedra, nunca teve marido morto, ela vive inventando história.